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segunda-feira, 14 de junho de 2010

A Natureza pelos olhos do Renascimento

LUÍS VAZ DE CAMÕES: ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO RENASCENTISTA

A NATUREZA PELA PENA DE CAMÕES LÍRICO E ÉPICO

Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada,
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se d’ua outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
que d’uns e d’outros olhos derivadas,
s’acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas,
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
Rimas, 81


A fermosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos ofrece,
Me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo m’enjoa e m’avorrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.
Rimas, 135


Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
Rimas, 13


Camões e Os Lusíadas













FENÓMENOS ATMOSFÉRICOS

Canto V

«Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.

«Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.

«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.

«Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e sutil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.

«Ia-se pouco e pouco acrecentando
E mais que um largo masto se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se co as ondas ondeando;
Em cima dele ũa nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co cargo grande d' água em si tomada.

«Qual roxa sangues[s]uga se veria
Nos beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co sangue alheio a sede ardente;
Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si e a nuvem negra que sustenta.

«Mas, despois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe
E pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por que co a água a jacente água molhe;
Às ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura
Que segredos são estes de Natura!

«Se os antigos Filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que deixaram!
Que influïção de sinos e de estrelas!
Que estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.»
Os Lusíadas, V, 16-23


Canto VI

Mas neste passo, assi prontos estando,
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca: acordam, despertando,
Os marinheiros dũa e doutra banda,
E, porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda.
– «Alerta (disse) estai, que o vento crece
Daquela nuvem negra que aparece!»

Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela.
– «Amaina (disse o mestre a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!»
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!

O céu fere com gritos nisto a gente,
Cum súbito temor e desacordo;
Que, no romper da vela, a nau pendente
Toma grão suma d' água pelo bordo.
– «Alija (disse o mestre rijamente,
Alija tudo ao mar, não falte acordo!
Vão outros dar à bomba, não cessando;
À bomba, que nos imos alagando!»

Correm logo os soldados animosos
A dar à bomba; e, tanto que chegaram,
Os balanços que os mares temerosos
Deram à nau, num bordo os derribaram.
Três marinheiros, duros e forçosos,
A menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham, dũa e doutra parte,
Sem aproveitar dos homens força e arte.

Os ventos eram tais que não puderam
Mostrar mais força d' ímpeto cruel,
Se pera derribar então vieram
A fortíssima Torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que creceram,
A pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.

A nau grande, em que vai Paulo da Gama,
Quebrado leva o masto pelo meio,
Quási toda alagada; a gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio.
Não menos gritos vãos ao ar derrama
Toda a nau de Coelho, com receio,
Conquanto teve o mestre tanto tento
Que primeiro amainou que desse o vento.

Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam
Arruinar a máquina do Mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cos raios em que o Pólo todo ardia!

As Alciónias aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se de seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe causaram.
Os delfins namorados, entretanto,
Lá nas covas marítimas entraram,
Fugindo à tempestade e ventos duros,
Que nem no fundo os deixa estar seguros.

Nunca tão vivos raios fabricou
Contra a fera soberba dos Gigantes
O grão ferreiro sórdido que obrou
Do enteado as armas radiantes;
Nem tanto o grão Tonante arremessou
Relâmpados ao mundo, fulminantes,
No grão dilúvio donde sós viveram
Os dous que em gente as pedras converteram.

Quantos montes, então, que derribaram
As ondas que batiam denodadas!
Quantas árvores velhas arrancaram
Do vento bravo as fúrias indinadas!
As forçosas raízes não cuidaram
Que nunca pera o céu fossem viradas,
Nem as fundas areias que pudessem
Tanto os mares que em cima as revolvessem.
Os Lusíadas, VI, 70-79

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