A cantiga de amigo nasceu na comunidade rural, como complemento do bailado e do canto colectivo dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza de maior importância social; e é assim que, não apenas na Península ou na România, mas em povos tão distantes como o chinês, se verificam vestígios, quer do paralelismo, quer da cantiga de mulher. Transplantada a outros meios, as suas formas variaram e, em muitos sentidos, enriqueceram-se, ao mesmo tempo que se adaptavam a novos temas característicos de uma cultura mais mercantil ou cortês.
O primitivismo de muitas cantigas de amigo constitui precisamente a sua principal atracção para muitos leitores de hoje. Algo se oferece nelas de muito diferente da mentalidade do homem actual, permitindo certas formas de sensibilidade, que nem por terem sido recalcadas por aquisições posteriores deixaram de subsistir na personalidade moderna, sempre prontas a despertar. Há, por exemplo, em alguns cantares de amigo uma intimidade afectiva com a natureza que é muito diferente do gosto cenográfico da paisagem (como quadro ou reflexo dos sentimentos humanos), e que deve antes relacionar-se com o animismo típico de certa mentalidade pré-mercantil. Dir-se-ia existir uma afinidade mágica entre as pessoas e tudo o que parece mover-se ou transformar-se por uma força interna: a água da fonte e do rio, as ondas do mar, as flores da Primavera e do Verão, os cervos, a luz da alva, a dos olhos. Todas estas coisas participavam ainda de tantas associações mágicas, as suas designações evocavam tantas correspondências entre o impulso amoroso e o florescer das árvores, os actos dos animais, os movimentos das coisas mais presentes, que o esquema repetitivo era como o imperceptível e subtil desenvolvimento de um tema através de modulações que sugerem os seus inesgotáveis nexos com a vida.
António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa
Assim, a cantiga de amigo constitui essencialmente a expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, liberta dos convencionalismos a que obedece a cantiga de amor.
Maria Ema Tarracha Ferreira, Poesia e Prosa Medievais
Ai, flores, ai, flores do verde pino
Ai, flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai, Deus, e u é?
Ai, flores, ai, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
Ai, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mh'á jurado!
Ai, Deus, e u é?
- Vós me preguntades polo voss'amigo,
e eu ben vos digo que é san'e vivo:
Ai, Deus, e u é?
Vós me preguntades polo voss'amado,
e eu ben vos digo que é viv'e sano.
Ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é san'e vivo
e seerá vosc'ant'o prazo saído:
Ai, Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv'e sano
e seerá vosc'ant'o prazo passado:
Ai, Deus, e u é?
El-Rei D. Dinis
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